NIHILISMO

Termo que designa um fenómeno das sociedades ocidentais, reconhecível a partir das últimas décadas do século XIX, devido ao facto de o ideal cristão ter declinado irreversivelmente e em lugar dele não ter nascido outro ideal. Nihilismo significa, então, uma perda de ideal pelo desaparecimento de uma referência desejável e mobilizadora, que se revela por uma atitude meramente contemplativa do mundo e pelo desalento. Significa também a aceitação do jogo dos contrários de que o mundo é composto para o qual não se vislumbra uma solução satisfatória; significa também a negação das estruturas estáveis do ser num mundo tornado fábula. O nihilismo é parente de outros termos como perspectivismo e relativismo decorrentes da filosofia de Nietzsche. O nihilismo está associado à sensibilidade decadentista e estetizante pós romântica (por exemplo, de certa produção literária de Baudelaire) e finissecular oitocentista. A asserção de Nietzsche, “a forma é fluida, porém o “sentido” ainda é mais” (Para a Genealogia da Moral, 1887) sintetiza os contornos dessa sensibilidade. A desidealização pressuposta é, no entanto, um produto ambíguo porque nasce das condições do mundo moderno mas simultaneamente representa o desvanecimento de certos vectores positivos da modernidade. Por um lado, o nihilismo provém do desencanto causado pela profanização da cultura ocidental do mundo moderno emergente visto que as concepções religiosas se desintegraram em finais do século XVIII mas, por outro lado, o nihilismo surge numa espécie de segundo momento da modernidade (em arte, coincidente com o pós romantismo) marcada pela ausência de valores absolutos em relação a uma primeira fase, que é configurada de um modo positivo e construtivo pelo “horizonte de expectativa”. Trata se da expectativa característica dos tempos modernos, que se traduz pela renovação contínua com vista a um progresso evolutivo e aperfeiçoado das condições da existência humana. A sociedade moderna, no entanto, ao promover a igualdade entre cidadãos, torna os todos iguais pressupondo neles o desejo das mesmas coisas. A uniformidade e a homogeneização dos seres humanos pode estar na origem da falta de ideal e de objectivos. Para alguns, Nietzsche por exemplo, a democracia moderna conduz à apatia pela inexistência de diferenças entre os indivíduos, que são nivelados “por baixo”. De qualquer maneira, a transformação constante defendida pelos movimentos liberais e modernizantes em todo o mundo ocidental do século XIX sofre uma desaceleração em pouco tempo visto que os princípios basilares são postos em causa por vários núcleos de pensamento e de acção. Estamos a referir nos à crítica da modernidade iniciada por Marx, por Nietzsche e por Freud. Esta crítica afirma fundamentalmente que a razão, fundada no princípio da subjectividade, cria um conjunto de estruturas sociais configurador não da libertação mas da opressão, da exploração, do aviltamento do ser humano e, finalmente, da alienação. Marx avança o conceito de luta de classes, Freud os de inconsciente e de sexualidade, Nietzsche o da verdade como dissimulação e como vontade de poder.

O nihilismo é o que resta da descrença em relação à modernidade; é, em muitos textos literários, a camada residual de significações proveniente do estilhaçamento da noção de progresso unitário e supostamente universal, aparecendo como desenraizamento, secularização, antipositivismo, espiritualismo vagamente panteísta. Representa também o momento negativo da modernidade, ainda ligado a esta na medida em que o nihilismo é uma resposta pela negativa ao optimismo característico do racionalismo e do historicismo oitocentistas. As categorias da razão dominadora como a unidade, o fim e a substância são abandonadas em favor da ideia da incomensurabilidade do universo. A literatura entende o nihilismo como um conjunto de estruturas discursivas, que remete para a ausência de valores absolutos e de fronteiras claras entre contrários. Um dos processos literários preferidos, na época, é o fragmento. Neste sentido, o nihilismo faz parte da situação socio linguística característica do simbolismo e a do modernismo. As significações referidas, que remetem para o nihilismo, são encontradas, por exemplo, na poética de Gomes Leal (Claridades do Sul, 1875) e nas obras mais significativas de Raúl Brandão (por exemplo, Farsa, 1903 e Húmus, 1917). Aos olhos de uma certa tradição literária envelhecidamente neoromântica da transição do século XIX para o XX, o nihilismo aparece como sinónimo de satanismo, de imoralismo, eventuamente de amoralismo; pode, porém, assumir também a forma de um vitalismo. Almada Negreiros, autor do Manifesto anti Dantas (1916), deve ter sido percebido por Júlio Dantas como imoral e nihilista. O romance Maria Adelaide (1938) de M. Teixeira Gomes, autor de obras marcadamente estetizantes, pode ser avaliado como amoral devido ao vitalismo associal. O esteticismo vagamente decadentista, com laivos noviromânticos (evoluindo, no início do século XX, para os modernismos), pode ser considerado de coloração nihilista na medida em que problematiza a verdade, que surge, então, como convenção ou como projecção (não como adequação às coisas). A obra poética de Fernando Pessoa é uma declaração (de um modo implícito) da impossibilidade de um saber acerca da essência das coisas. Os heterónimos são a resposta a essa descontinuidade básica entre a realidade e o discurso que pretende representá la.

O influxo de Nietzsche nas obras portuguesas de matriz decadentista é breve, em parte motivado pela penetração tardia da sua influência efectiva através de traduções da sua obra, só surgidas no início do século XX. As vanguardas de expressão poética do século XX (futurismo, dadaísmo, surrealismo, abjeccionismo, construtivismo, abstractivismo, etc.), apesar de contrariarem as convenções vigentes, não são globalmente nihilistas porque visam transformar a obra de arte num acelerador do tempo (por isso são revolucionárias) e pressupõem valores remodeladores da vida decorrentes de experiências humanas ainda não configuradas pela arte. Na literatura portuguesa (de um modo geral, nas outras literaturas ocidentais), toda a conjuntura referida da transição de século, afecta a uma tonalidade nihilista, desvanece se fortemente na década de 30 devido ao interesse pelo realismo motivado pelo carácter precário da existência humana no período das duas grandes guerras. O realismo coexiste com vanguardas como a surrealista. No ponto de vista político e cultural, a tonalidade de teor nihilista reaparece no pós guerra sob a forma de pura negatividade em relação à realidade instituída de que À Espera de Godot (1952) de Samuel Beckett é um bom exemplo literário. Esta negatividade vista como moderna e, por essa razão, percebida por alguns como inevitável também tem vindo progressivamente a esbater se, não tanto porque a sociedade tenha encontrado uma positividade nova mas porque o nihilismo se tornou uma rotina configuradora de imobilismo. O momento presente, neste final de século, parece perceber que a modernidade tardia e radicalizada pressupõe um modelo social e cultural, que funciona de um modo autónomo. Trata se do paradigma democrático liberal, que tem vindo a generalizar se por todo o mundo. Visto que a sociedade não vê para além deste modelo instituído, estamos confinados ao “espaço de experiência” destituído do “horizonte de expectativa” presente no início da modernidade. Analisada de um modo mais positivo, a homogeneização seria um privilégio de cada um numa sociedade desenvolvida em que os seus membros já não têm que se preocupar com as questões políticas (em última análise, de sobrevivência pessoal) visto que alguém (os políticos profissionais) se encarrega desses aspectos por eles. Na literatura, esta tendência actual tem se traduzido pela redescoberta de um realismo sem programa, sem escola, e mesmo para além das gerações literárias. As obras romanescas de António Lobo Antunes e de José Saramago, afirmadas a partir da década de 80 do século XX, não tendo aspectos particulares em comum entre si, inscrevem se neste contexto sóciocultural de uma leveza vagamente realista e descomprometida. O nihilismo tem algo de trágico, que é um vector ausente da cultura do final do século XX.

Bib.:Abbagnano, Nicola, Nomes e Temas da Filosofia Contemporânea, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Castro, E. M. de Melo, As Vanguardas na Poesia Portuguesa do Século XX, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1980; Giddens, Anthony, As Consequências da Modernidade, Celta Editora, Oeiras, 1992; Habermas, Jurgen, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Marques, António, Perspectivismo e Modernidade o valor construtivo e crítico do perspectivismo de Nietzsche, Vega, Lisboa, 1993; Marques, António, “Introdução Geral às Obras Escolhidas de Nietzsche”, in O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo, Primeiro Volume, Círculo de Leitores, Lisboa, 1996; Pereira, José Carlos Seabra, Do Fim De Século ao Tempo de Orfeu, Livraria Almedina, Coimbra, 1979; Vattimo, Gianni, O Fim da Modernidade Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós Moderna, Editorial Presença, Lisboa, 1987; Zima, Pierre V., Pour une Sociologie du Texte Littéraire, 10/18; Union Générale d’Éditions, 1978.

Eunice Cabral

OXIMORO

[Dr gr. oxymóron, de oxýs = ‘arguto’ + morón = ‘estúpido’, donde deve ser pronunciado o cs i m ó r o .]

Na retórica, consiste na combinação e expressão de vocábulos paradoxais. Aproxima-se da antítese, porém no oximoro ambos os termos se excluem, a fim de revelar que a conciliação de contrários é possível e, por vezes, indispensável para se exprimir a verdade. Veja-se o caso da novela de Mário de Sá-Carneiro “Eu Próprio o Outro” ou do célebre “Amor é fogo que arde sem se ver, / É ferida que dói e não se sente” de Luís de Camões. Poder-se-á considerar este recurso estilístico como uma “antítese lexical”, isto é, o objectivo do oximoro é intensificar, ainda mais do que antítese, a junção paradoxal, vincando que o confronto de duas palavras ou ideias opostas e incongruentes permite valorizar a força expressiva, muitas vezes para despertar o efeito epigramático. Este recurso, apreciado em particular pelos poetas barrocos, românticos e modernistas, não é um obstáculo para o raciocínio, de tal forma que o possa conduzir a uma situação sem saída. Pelo contrário, é uma figura que se situa no campo do sentido conotativo, ajudando a definir determinados conceitos de difícil explicação. A expresão popular “ilustre desconhecido” exemplifica a sua utilização quotidiana e inconsciente.

ANTINOMIA; ANTÍTESE; APORIA

Carlos Manuel Serra

Palíndromo

Classifica-se deste modo uma palavra, frase, linha em verso, ou número, que (se ignorados os espaços entre as palavras e/ou a pontuação), permitam a sua leitura, mantendo sentido unívoco, uma vez lidas da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda. «Ovo», «Atai a gaiola saloia gaiata», «525», são exemplos de palíndromos.

Alguns escritores poderão recorrer aos versos palíndrómicos como um mero exercício verbal que permita ao leitor o entretenimento mental, não são no entanto considerados como uma técnica que vise enriquecer a literatura.

Jogando com «One TS Eliot» obtemos «étoile steno», e outros exemplos seriam: «Go hang a salami, I’m a lasagna hog.» ou «I made tart surf net, for often frustrated am I».

Muito vulgarmente, pode observar-se o recurso a palíndromos, inseridos num jogo de puro passatempo, a par com o cruzadismo de palavras, os quebra-cabeças, os aritgramas ou os anagramas, entre outros.

ANAGRAMA

Ana Paula Rocha

RENASCIMENTO

Fenómeno eminentemente cultural, incidindo na literatura, artes plásticas, história, educação, ciência, filosofia moral e política, registado entre a segunda metade do séc. XIV e os primórdios do séc. XVII em vários países da Europa ocidental. Iniciado em Itália ( Florença ) com o Humanismo, irradiou para outros países europeus, adquirindo e combinando - se com características próprias das respectivas culturas nacionais. Embora o vocábulo tenha sido primeiramente utilizado por Balzac no romance Bal de Sceaux (1829) e só adquira significado corrente com Histoire de France (1833) de Michelet e A Civilização do Renascimento em Itália (1860) de J. Burckhardt, não subsiste a mínima dúvida de que os contemporâneos dos sécs. XV e XVI se encontravam convencidos de viver numa época nova, de re-nascença ou renovatio, que contrastavam com ‘as trevas’, barbárie e rudeza do período milenar intermédio que os separava da Antiguidade Clássica. Esta perspectiva, divulgada pelos humanistas e que perdurou até aos nossos dias mercê da grande influência do livro de Burckhardt, merece hoje reservas de vária ordem, quer pelo reconhecimento da existência de períodos anteriores caracterizados por grande interesse na cultura da Antiguidade Clássica ( renascimento carolíngio e o do séc. XII, famoso pela recuperação de várias obras de Aristóteles), quer pela impossibilidade de considerarmos rudes e selvagens os arquitectos e artesãos responsáveis pela construção das catedrais góticas, quer ainda por um grau assinalável de continuidade entre a Idade Média e o Renascimento.

O Renascimento italiano inicia - se com a avidez manifestada pelos humanistas em descobrir e recuperar os textos originais das obras de autores da Antiguidade greco - latina, não já e só para ilustrarem pontualmente casos morais, mas como veículos privilegiados de acesso a toda uma civilização antiga, bem mais rica e complexa do que a tradição medieval transmitira. Para além dos contributos precursores de Dante (1265-1321) e Bocaccio (1313-75) na literatura e de Giotto (c.1266-1337) na pintura, o papel desempenhado por Petrarca (1304-74) afigura-se decisivo na reacção contra o ensino considerado insatisfatório e inútil da Escolástica e respectiva ênfase excessiva em valores transcendentes, tal como na nova perspectiva histórica de encarar os autores clássicos no respectivo contexto secular e na utilização dos valores por si transmitidos, especialmente o republicanismo da Roma antiga. Com Petrarca, Coluccio Salutati (1335-1405), o futuro secretário papal Poggio Bracciolini (1380-1459) e a cadeira de grego instituída no ano de 1396 em Florença e assegurada por Manuel Chrysoloras (1350-1415), estabelece-se a primazia do latim e grego clássicos, a necessidade de recuperar os originais—lema ad fontes conducente a um esforço intenso de busca de manuscritos—e a de proceder à análise crítica de variantes do mesmo texto, culminando na fundação da filologia e na supremacia das humanidades (gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral), consolidada a partir de meados do séc. XV por Lorenzo Valla (1407-57) e Angelo Poliziano (1454-94), entre outros.

Constituindo no início pequenas células dispersas de leigos e eclesiásticos entusiastas das letras clássicas, os humanistas conseguem atingir no séc. XV dimensão e influência significativas mercê do mecenato de mercadores, burgueses abastados, nobres e condottieri de cidades italianas como, por exemplo, Florença, Veneza, Siena, Génova, Pádua e Milão. Num enquadramento caracterizado por guerras frequentes mas também de acentuado progresso económico, os detentores do poder político das Cidades-Estado italianas e, em particular, de repúblicas como Florença, patrocinam as actividades dos humanistas e artistas plásticos por desejos de fama e glória pessoal, por patriotismo para com a sua respectiva Cidade e por se terem apercebido da relevância prática e actual das obras de filosofia política de Platão e Aristóteles, de oratória de Cícero e Quintiliano, e de ética e história de Séneca, Marco Aurélio, Tito Lívio, Plutarco, Heródoto, Tucídides e Políbio. Os valores de liberdade, igualdade e activa participação política dos cidadãos, típicos do republicanismo clássico, são assimilados pelas repúblicas italianas que os utilizam na defesa concreta da respectiva autonomia política. Por outro lado, esta identificação estreita com os ideais da Roma clássica republicana e o melhor conhecimento do passado têm consequências paradoxais de distanciamento, traduzido numa consciência aguda de anacronismos medievais e da especificidade histórica da Antiguidade, para além de uma outra de grande alcance futuro: a história deixa de ser considerada em função da ortodoxia teológica da Igreja e seculariza-se, passando a ocupar-se de um mundo feito pelo homem, como ilustram as obras de Maquiavel (1469-1527) e Guicciardini (1483-1540). Deste modo, a relevância prática do conhecimento histórico, da filosofia política, da ética e da oratória clássicas, aliada à fixação e tradução dos textos e maior acessibilidade dos livros proporcionada pela invenção decisiva da imprensa por Gutenberg em meados do séc. XV, tem repercussões notórias na educação das élites urbanas, contribuindo para a divulgação crescente de um curriculum alternativo que combinava o estudo das humanidades com a prática regular de exercícios físicos.

A crença no carácter modelar da Antiguidade greco-latina e respectiva influência secularizante, tal como o cada vez maior interesse despertado pelo Homem e sua natureza, manifestam-se ainda em Itália pelo florescimento exuberante das artes plásticas que parece justificar a tese de Burckhardt sobre a originalidade italiana e paganismo implícito. Importa referir, porém, que a Itália não foi o único centro inovador: nos Países Baixos, Jan van Eyck e Roger van der Weyden aperfeiçoaram nos primórdios do séc. XV a técnica da pintura a óleo que viria a ser muito apreciada pelos italianos; por seu turno, na área cultural alemã, Hans Holbein (1497-1541) e Albrecht Durer (1471-1528) desenvolveram temas e formas de representação diversos do sentido de equilíbrio e harmonia convencionais da pintura renascentista italiana. Isso em nada diminui o extraordinário valor da descoberta da perspectiva e das muitas e variadas obras de Brunelleschi (1377-1444), Luca della Robia (1400-82), Botticelli (1445-1510), Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520) e Miguel Ângelo (1475-1564), servindo antes para realçar que, como fenómeno europeu, o Renascimento excede os êxitos italianos e concretiza-se também nos Descobrimentos portugueses e espanhóis, nas obras de Erasmo, More e Rabelais, Camões e Shakespeare, Montaigne e Cervantes.

Em França, a influência renascentista italiana no âmbito das artes plásticas encontra - se associada às campanhas militares desenvolvidas pela dinastia Valois em Itália nos finais do séc. XV, sendo notória a partir de 1495 pela introdução crescente de motivos clássicos e alusões mitológicas em castelos e mansões senhoriais de estilo gótico. O palácio imponente de Chambord, mandado construir de raiz por Francisco I em 1519 e terminado em 1550, constitui um exemplo da forte influência renascentista italiana de gosto classicizante que, também na pintura, floresceria no séc. XVI, mas também do emprego continuado de símbolos régios e tradições arquitectónicas francesas de origem medieval. Todavia, iniciado em meados do séc. XV e, por isso, bem anterior ao convencional ponto de viragem de 1495, o movimento humanista francês atinge elevada craveira com os eruditos Guillaume Budé ( 1468 - 1540 ), famoso pela renovação dos estudos jurídicos, e Jacques Lefèvre d’Étaples ( 1455 - 1536 ) - autor das primeiras edições fidedignas de todas as obras de Aristóteles, e contribui de forma decisiva para a simbiose original de classicismo e tradição nacional francesa, patente nas obras de Ronsard ( 1524 - 1585 ) e Rabelais (1483 - 1553). O mesmo acontece no último quartel do séc. XVI com a publicação dos Ensaios ( a partir de 1580 ) por Montaigne ( 1533 - 1592 ) que, demonstrando sólidos conhecimentos dos Antigos, ousa adoptar uma inovadora voz intimista (Eu...) e assumir o carácter falível das suas obras, denominando - as ensaios ou tentativas, assim originando uma forma de escrita hoje extremamente divulgada.

Em Portugal, para além dos contactos frequentes com humanistas e impressores italianos já no séc. XV, o classicismo renascentista italiano nas artes plásticas não obteve repercussão de monta; os Painéis de S. Vicente (c.1465), de Nuno Gonçalves, constituem a obra mais notável e denotam influência assinalável da pintura flamenga. Já em Os Lusíadas (1571), de Luís de Camões, em que o aproveitamento da mitologia clássica é óbvia, a criatividade do autor excede claramente a fonte de inspiração. Um processo semelhante ocorreu em Espanha na literatura e nas artes plásticas. O estímulo crescente do humanismo italiano a partir do reinado de D. João II de Castela (1406-1454) conduz ao fomento de estudos clássicos e de análise filológica dos originais da Bíblia, representado por Antonio de Nebrija (1444-1522), autor da gramática Introdução ao Latim (1481) e colaborador da Bíblia Poliglota Complutense (1514-1517), além de estimular a curiosidade pelo passado hispânico longínquo, presente na quantidade apreciável de ruínas. Já a poesia de amor petrarquiano e outras formas poéticas italianas e clássicas, praticadas por Garcilaso de la Vega (c.1501-1536) e Juan Boscán (c.1492-1542), combinam rigor técnico com temas e motivos cavalheirescos, específicos do Renascimento espanhol, ilustrados de sobejo pelo romance vernáculo Amadis de Gaula ( 1508 ), de García Ordóñez de Montalvo. De facto, este romance de cavalaria, que conseguiu ser o livro mais vendido internacionalmente e objecto de inúmeras imitações, simboliza a permanência de ideais tardo - medievais na Espanha do século de ouro e uma tradição genuína e específica que, de forma irónica, culmina com a sua crítica genial: Dom Quixote (1605) de Cervantes. Na arquitectura, o Escorial constitui um exemplo da influência renascentista clássica, mas depurado de decoração, ao passo que a fachada da Universidade de Salamanca, de princípios do séc. XVI, ilustra o plateresco, um estilo de transição resultante da simbiose de ideais arquitectónicos renascentistas com tradições flamengas mais antigas. Também na escultura e pintura ocorre um fenómeno semelhante, como nos retratos e retábulos de Pedro Berruguete, activo de 1483 a 1504, em que se combinam elementos góticos e florentinos, cabendo a El Greco (1514-1614) os louros de maior e extraordinária originalidade.

Deste modo, embora o desnudamento do corpo humano na pintura e escultura renascentista italiana e francesa e o emprego de alusões de influência clássica na literatura europeia possam ser entendidos como manifestações de paganismo, a substituição da religião cristã pelos deuses gregos e romanos nunca foi encarada - salvo raras excepções - pelos renascentistas que, por vezes, não deixaram de se aperceber de algumas tensões implícitas entre os dogmas cristãos e os valores e representações do mundo clássico. Assim, a complexidade do Renascimento deriva não tanto de rupturas, mas da coexistência do tradicional e do inovador, e da presença - julgada compatível - de tradições diversas como a clássica, a cristã, a hermética (do egípcio Hermes Trimegisto) e a da Cabala judaica, que os cristãos neoplatónicos Pico della Mirandola (1463-94) e Marsílio Ficino (1433-99) tentaram harmonizar.

A Oração sobre a Dignidade do Homem, escrita por Pico em 1486, constitui exemplo emblemático desse sincretismo e de uma perspectiva do homem que se encontra implícita na diferenciação habitual entre o Renascimento meridional, caracterizado pela supremacia da vertente estética, e o nórdico ou setentrional, pela primazia conferida à ética. Dito de outro modo, o humanismo cívico e secular das repúblicas italianas estaria profundamente relacionado com o egocentrismo, o individualismo económico e a exuberância do corpo humano, patente na pintura e escultura, opondo-se ao humanismo cristão representado por Erasmo (1466-1536) e Thomas More (1478-1535) - que consideravam o saber dos Antigos um auxiliar do cristianismo - e às preocupações morais dos humanistas alemães e da Reforma. Além de tal distinção dever ser considerada um mero ponto de partida analítico, importa realçar que Pico, ao recorrer a obras das mais diversas tradições para manifestar incontível júbilo e admiração pela capacidade - e livre arbítrio implícito - de o género humano poder aproximar-se tanto dos anjos como das bestas, afirma a dignidade e excelência do Homem num mundo governado por Deus e não por divindades pagãs. O optimismo indesmentível de Pico sobre as inúmeras potencialidades da natureza humana contrasta de modo inovador com o pessimismo medieval, de influência agostiniana, mas inscreve - se na ortodoxia cristã, visto que as qualidades excepcionais do Homem dependem, em última análise, do seu Criador e não dele próprio.

Por outro lado, o caso inglês constitui um exemplo paradigmático da cautela recomendável na caracterização do Renascimento setentrional, atendendo a duas tendências bem diversas. A primeira, marcante de meados do séc. XV até cerca de 1580, corresponde à recepção, desenvolvimento e decadência gradual do Humanismo; a segunda, de 1580 até 1626, coincide com o apogeu do teatro isabelino e as obras de Marlowe (1564-93), Shakespeare (1564-1616) e Ben Jonson (1572-1637), além dos escritos filosóficos de Francis Bacon (1561-1626). O contacto pessoal dos ingleses com humanistas proeminentes, iniciado já na década de 1430 por Humphrey, Duque de Gloucester, com Leonardo Bruni, e desenvolvido por Grocyn (?1446-1519), Linacre (?1460-1524) - ambos discípulos de Poliziano, Colet (?1467-1519) - aluno de Ficino, e Thomas More, amigo de Erasmo, permite-lhes um acesso fácil aos originais gregos e latinos que se traduz numa forte influência directa do platonismo, conjugada com os ideais de desprendimento, rectidão moral na vida quotidiana, frugalidade e comunitarismo do movimento Devotio moderna, fundado no séc. XV nos Países Baixos. Além de deixar transparecer tais influências, Utopia (1516) de More debruça-se sobre injustiças da organização sócio-económica, sobre a guerra e o recurso a mercenários, a educação, a tolerância religiosa e, de forma caracteristicamente renascentista, interroga - se sobre o melhor sistema prático de governo e os ideais de vida activa e contemplativa. The Book named the Governor (1531) de Thomas Elyot e The Schoolmaster (1570) de Roger Ascham aprofundam os assuntos da política e da educação, mas não modificam os moldes, pelo que a busca de equilíbrio e as preocupações morais predominantes se inscrevem no conceito de Renascimento setentrional.

Todavia, além de a década de 1570 permitir identificar já a existência de um culto visando a glorificação da personalidade da raínha Isabel I, resultante da simbiose de ideais cavalheirescos, cristãos e clássicos, a produção dramática de Marlowe e Shakespeare a partir da década de 1580 altera as coordenadas vigentes de forma inovadora e radical, quer pelo clima frequente de irreligiosidade e presença subjacente da deusa Fortuna, quer pela representação e análise de profundas e violentas emoções humanas como o ciúme, a traição, o assassínio, a avareza, a luxúria, a ambição desmedida pela riqueza, pelo poder e pelo conhecimento. Dr. Faustus (?1588), de Marlowe, símbolo desta tripla ambição que conduz o estudioso Fausto a celebrar um pacto com Mefistófeles, constitui um paradigma do homem renascentista na sua ânsia de ultrapassar os limites do conhecimento humano; por seu turno, Ricardo III, Othelo, Macbeth e Hamlet são várias de muitas outras personagens shakespearianas que ilustram dramaticamente facetas do indivíduo concreto, com particular incidência na dissimulação e trapaça, no ciúme, na ânsia e luta pelo poder, na desconfiança e na necessidade de auto-conhecimento. Em resumo, se até cerca de 1580 o Renascimento em Inglaterra se identifica com os valores dominantes do Humanismo cristão, o Renascimento inglês propriamente dito, representado pelo teatro isabelino, revela a presença do pensamento secular de Maquiavel e Guicciardini, de várias influências cristãs medievais e da ênfase no indivíduo identificada por Burckhardt, caracterizando-se mais pelo excesso e desmesura do que pela busca de equilíbrio. Porém, por mais paradoxal que pareça e a exemplo da coexistência referida de tradições diversas em Itália, França, Portugal e Espanha, esta época áurea da cultura inglesa coincide temporalmente com a divulgação e influência crescentes do Puritanismo, herdeiro directo da Reforma.

Fausto e respectiva sede inesgotável de saber, tal como a alusão a Francis Bacon, remetem para um outro traço renascentista fundamental que excede o âmbito do Humanismo e se reporta à matemática e à filosofia natural (física). Movidos pelo imperativo de recuperar e traduzir todos os textos da Antiguidade greco-latina e de outras culturas, como a egípcia e a hebraica - directamente relacionada com a Bíblia, os humanistas traduziram e divulgaram obras de magia e as de Euclides, Arquimedes, Galeno, Plínio, Teofrasto, Ptolomeu, Platão, Aristóteles e Lucrécio. O emprego do cálculo matemático e a cada vez maior importância atribuída ao conhecimento empírico dos materiais, do homem e do mundo, desempenham papel relevante nas obras de Brunelleschi, Leon Battista Alberti e, em especial, Leonardo da Vinci, mas não constam do elenco habitual dos humanistas; ter-se-ia de esperar por Galileu, nos primórdios do séc. XVII, para inaugurar a matematização da física. Além disso, importa realçar que, como bem demonstrou Frances Yates, a matemática se encontrava associada bem mais a conhecimentos hermético - ocultistas do que à técnica rigorosa de cálculo hoje reconhecida e praticada. Por esse motivo e por defender a teoria heliocêntrica contrária à regra da fé, De revolutionibus orbium coelestium de Copérnico (1473-1543) foi apresentado pelo prefaciador Osiander como mera hipótese matemática, perfilhada em 1576 por Thomas Digges e desenvolvida a partir da década de 1580 por Thomas Harriot (1560-1621), astrónomo e matemático simpatizante da concepção atomista do universo, que não publicou as suas obras para evitar ser encarcerado sob a acusação de ateísmo. Simbolizando o interesse renascentista pelo conhecimento baseado na experiência, importa ainda referir On the Fabric of the Human Body (1543) do flamengo Andreas Vesalius (1514-64) que muito contribuíu para o fomento do estudo da anatomia humana, que se prolongaria pelo séc. XVII. Neste contexto, as obras de Fr. Bacon The Advancement of Learning (1605), Novum Organon (1620) e De Augmentis Scientiarum (1623) representam, mais do que uma chegada, um ponto de partida decisivo ao criticarem a esterilidade da Escolástica, a degeneração imitativa (Ciceronianism) do Humanismo e ao proporem o método empírico-experimental para reconstruir o conhecimento científico desde a base sem intervenção da teologia.

Constituindo no início um fenómeno urbano e elitista em várias cidades-repúblicas italianas que visava recriar a civilização greco-latina em toda a sua plenitude, o Renascimento afirmou-se inicial e particularmente pelo Humanismo que conseguiu forjar um grau assinalável de comunhão de pressupostos, métodos e objectivos entre estudiosos de vários países europeus, resultante no cosmopolitismo. Porém, o modo e grau de aproveitamento dos valores transmitidos pelos Antigos divergiram de país para país, dependendo da época, da criatividade e de factores políticos, religiosos e sócio-económicos específicos; a imitação dos Antigos não raro consistiu no modo privilegiado de veicular inovações tanto nas artes plásticas como nas humanidades, salientando-se nestas últimas o florescimento das línguas vernáculas. Além disso, a ânsia inesgotável de saber, traduzida na busca humanista de manuscritos, concretizou - se a partir do séc. XV - de forma gradual e variável - na curiosidade pelas vertentes psicológica, moral e política do homem, pela análise empírica e anti-escolástica do mundo e pelo descobrimento de novos mundos. O Renascimento constitui pois um fenómeno eclético e um período charneira na história da Europa, que, para além dos muitos êxitos específicos, prepara a ruptura epistemológica seiscentista.

BIBLIOGRAFIA. Burckhardt, J. A Civilização do Renascimento em Itália (1860); Brown, A. The Renaissance (1990) ; Burke, P. The Renaissance (1997) ; Davies, S. (ed.), Renaissance Views of Man (1978); Ford, B. (ed.), The Cambridge Guide to the Arts in Britain: Renaissance and Reformation, vol. 3 (1989); Green, V.H.H. Renascimento e Reforma (1964; 1991); Martindale, J. (ed.), English Humanism: Wyatt to Cowley (1985); Moser, Fernando de Mello, Tomás More e os Caminhos da Perfeição Humana (1982); Murray, C. (org.) História do Renascimento (1997); Yates, F. The Occult Philosophy in the Elizabethan Age (1980).

Júlio Carlos Viana Ferreira

METAFICÇÃO

Designação pela qual se tornou conhecido um conjunto de escritores americanos do pós-II Guerra Mundial (John Hawkes, William Gadis, Vladimir Nabokov, John Barth, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, entre outros ) que, apesar de possuírem estilos distintos , convergiam quer numa dimensão experimental quer na busca de uma narrativa fundada numa metalinguagem , uma ficção fundada na elaboração de ficções. A metaficção surge numa tentativa de superar o peso das tradições regionalistas e realistas na literatura americana. Deste modo, conceberá como objectivo imediato a subversão dos elementos narrativos canónicos - intriga, personagens, acção-, tendo como estratégia final a elaboração de um jogo intelectual com a linguagem e com a memória literária e artística. O termo metaficção foi introduzido por William H.Gass, vindo na sequência de outras designações, como fabulation ou surfiction que pretendiam definir esta nova atitude. Gass explora aquilo que considera ser a ausência de conexão entre a linguagem e a realidade, e a dimensão sensorial da leitura. Em Willie Master’s Lonesome Wife (1968), estes postulados teóricos e o experimentalismo do autor conhecem o seu momento mais radical através da inclusão de inserts visuais (fotografias), de diferentes cores e registos de impressão, assim como de diferentes texturas. Idêntica atitude face a uma desconexão entre realidade e linguagem está no cerne das estratégias ficcionais de Thomas Pynchon (The Crying of Lot 49, 1966), ficcionista que, negando a virtualidade positiva da linguagem e do sujeito, se debate com a ausência de um centro unificador. Diferente será a postura de Donald Barthelme que tenta encontrar na imaginação o poder unificador que lhe permita superar a fragmentação das sociedades contemporâneas. Em Barthelme, o humor com que utiliza personagens e géneros distintos poderá constituir uma forma de superação da dimensão trágica coeva. Em Lolita (1955), sua obra emblemática, Vladimir Nabokov explora o carácter cómico da tragédia humana através da de Humbert Humbert, simultaneamente denegando um vector fundamental da cultura americana, a inocência. Já John Barth fará da introspecção do sujeito o núcleo da narrativa. Em todos eles, a noção de jogo será, afinal, o centro da estratégia criativa.

FICÇÃO; METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA; PÓS-MODERNISMO

Bib.: Inger Christensen: The Meaning of Metafiction: A Critical Study of Selected Novels by Sterne, Nabokov, Barth and Beckett (1981); Larry McCaffery: The Metafictional Muse (1982); Frederic Jameson: “Metacommentary”, PMLA, 86 (1971); Linda Hutcheon: Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox (1980); Mark Currie (ed.): Metafiction (1995); Margaret Rose: Parody//Metafiction (1979); Neil Schmitz: “The Hazards of Metafiction”, Novel: a Forum on Fiction, 7, 3 (1974); Patricia Waugh: Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction (1984); Raymond Federman: Surfiction: Fiction Now… and Tomorrow (1975); Robert Scholes: Fabulation and Metafiction (1979); W. Hicks: The Metafictional City (1981.
Mário Avelar

EPOPEIA

Designação de origem grega para o género literário também chamado poesia épica, ou poesia heróica, ou ainda simplesmente épica (como substantivo), que denota um texto poético, predominantemente narrativo, dedicado a fenómenos históricos, lendários ou míticos considerados representativos duma cultura. O vocábulo pode igualmente estender-se a um conjunto de acontecimentos históricos percorridos por um determinado «ambiente» mitificador. O mais completo articulado luso-brasileiro desta segunda concepção foi desenvolvido por Fidelino de Figueiredo, mas ela abrange, de modo mais ou menos próximo e explícito, largas áreas ideológicas da abordagem literária, impulsionadas por um dos fundamentos retóricos do discurso histórico-épico de Camões (já patente na Ásia de Barros), a ideia de que a história nacional deve ser entendida como o florescimento duma epopeia fora do âmbito de qualquer textualização (Larsen e Krueger). É neste sentido que expressões correntes como «a epopeia dos Descobrimentos» ou «a epopeia da expansão portuguesa» manifestam a aderência ideológica, voluntária ou não, a uma estratégia discursiva que converte eventos documentáveis em «feitos». Tal estratégia está nas origens da transformação e substituição da épica primitiva mais simples, assente numa imagem do passado como mito, pela complexa epopeia clássica, onde vigora, acima de tudo, a imagem dum tempo heróico particular, definido como o glorioso passado da nação e como um modelo de emulação para os vindouros (Propp; Meletinski). Devem-se distinguir, consequentemente, os processos semânticos associados à epopeia, dos processos de análise crítica que possibilitam a entrada no seu universo. A epopeia define-se, em termos hoje válidos para os estudos literários, como um género formado a partir da sedimentação, historicamente equacionada, de características semióticas, temáticas, formais e expressivas de textos cuja descrição permite a respectiva inclusão no género.

Embora formulando assim uma resposta às utilizações abusivas do termo, a definição proposta peca naturalmente por ser mais uma versão do círculo vicioso da hermenêutica: como poderemos escolher uma epopeia para definirmos o género a que pertence se não soubermos à partida o que é uma epopeia? Para além disso, a épica confunde-se de tal maneira com as origens literárias da Humanidade e é de tal modo consensualmente tratada como totalizante e híbrida, por excelência a soma de todos os discursos, que parece esvaziar-se das características eventualmente próprias que possa possuir. Por razões culturais evidentes, a definição da epopeia é geralmente produzida em Portugal (como o foi durante muito tempo no Brasil) a partir do texto que assume o maior sentido histórico nacional, Os Lusíadas. No entanto, não se pode afirmar que esta seja uma experiência partilhada com outros universos culturais: é que não somente nenhum poema épico individual é um descritor suficiente da epopeia como género, como nem sequer pode depreender-se hoje, seja de que conjuntura for, qualquer conclusão válida, universalmente aceite, acerca da evolução histórica e artística que a epopeia representa, da sua temática própria e das formas que lhe serão intrínsecas (Etiemble; Colie).

Não obstante, a relativa permanência, durante largos períodos da história literária, de certas componentes, parece tolerar a designação concorde de «epopeia» ou «poesia épica» para determinados textos ou conjuntos de textos. Neste sentido, a crítica e a investigação conceberam algumas tipologias de significativo valor instrumental para o conhecimento do género épico e dos textos individuais nele inseríveis. Proceder-se-á à síntese daquelas classificações que possuem maior valor explicativo, seguindo depois para uma resenha da história da prática e da teoria da epopeia no Ocidente, em que se procura uma síntese da enorme diversidade e riqueza dos textos envolvidos, bem como do seu firme interrelacionamento.

Epopeia oral/primária e epopeia literária/secundária/de imitação (Bowra; Lewis; Saraiva) - O exemplo europeu mais típico é o da diferença entre, por um lado, as fórmulas de base oral, a igual clareza na expressividade das partes (Auerbach) e a impressão de espontaneidade de Homero e, por outro, o cuidado estilístico, o claro-escuro e a imitação literária do mesmo poeta por Virgílio. Não se pode olvidar o facto de que ainda hoje é possível testemunhar práticas do primeiro tipo em várias regiões do mundo (ex-Jugoslávia, África, o heikè japonês etc.), apesar do progressivo alastramento da escrita como veículo de expressão artística. Entretanto, há ligações entre os dois tipos que não podem ser escamoteadas em certas épocas, como veremos.

Cantar épico e épica culta/erudita - Fazem parte do primeiro grupo obras como as chamadas chansons de geste, o Poema de mio Cid castelhano, o cantar germânico dos Nibelungos (Nibelungenlied), o Beowulf britânico e outras de origem jogralesca medieval, incluindo provavelmente um cantar português sobre D. Afonso Henriques (Saraiva). Associados à formação de feudos e nações, e baseados em lendas ou relatos de transmissão oral, os cantares pouco têm a ver com o segundo tipo que reemerge no Humanismo europeu como forma erudita teoricamente assente na prática épica das civilizações antigas grega e romana, especialmente as obras de Homero e Virgílio. Com efeito, as relações entre os dois grupos parecem muito ténues, apesar de ser perceptível uma evolução do cantar para o poema épico culto através das recomposições e adaptações dos temas troianos, carolíngios e bretãos que serviram de matéria aos cantares, prática corrente entre alguns poetas eruditos italianos da era humanista. Novo contacto da produção culta com os cantares ocorreu a partir dos primórdios do Romantismo, com o nascimento do interesse etno-antropológico pela épica tradicional e pelo passado celta, gaélico, eslavo, índio.

Epopeia alexandrina e epopeia encomiástica (Newman) - O primeiro tipo é caracterizado por uma aposta na brevidade do texto, nos elementos polifónicos, imaginativos e didacticamente irónicos, enquanto o segundo prefere vastas proporções, fidelidade historiográfica e uma linguagem monoliticamente elevada. Calímaco, poeta de Alexandria que viveu no século III a.c., é o exemplo primeiro duma abordagem da epopeia como género filiado na prática de Hesíodo (Teogonia e principalmente Os Trabalhos e os Dias), uma vez que a Ilíada e a Odisseia de Homero haviam sido já esvaziadas da sua heterodoxia por críticos como Platão e épicos do segundo tipo como Quérilo de Samos (século V a.c.). A história subsequente do género assentaria nesta dualidade, com oscilação em favor do primeiro tipo nas obras de Catulo, Dante e Ariosto até Proust e Brecht (com o conceito de «teatro épico»), e em favor do segundo, a chamada «roda de Virgílio» dos gramáticos medievais, a Africa de Petrarca, ou as epopeias históricas e religiosas francesas do século XVII. No entanto, na maior parte dos casos, a história literária atesta a fusão de ambas as correntes, quando o fundo histórico-laudativo se confunde com a tradição mais livre da epopeia alexandrina.

Epopeia e romance (Lukács; Bakhtin) - O universo épico pertence ao passado absoluto, é, por natureza, inacessível à experiência pessoal e não admite pontos de vista». Bakhtin contrasta deste modo a epopeia com o dialogismo ou polifonia do romance. Esta teoria, como outras, presume uma evolução diacrónica necessária entre a epopeia, género mais primitivo, e o romance, o género do progresso tecnológico e social. Estas concepções, muito influentes pela força intelectual de quem as formulou, estão hoje largamente postas em causa. A literatura japonesa prova que o romance pode preceder a epopeia (Miner); os estudos mais recentes sobre a poesia épica da Antiguidade levam à conclusão de que «a opinião de Bakhtin sobre a natureza não polifónica da epopeia é simplesmente falsa» (Boyle). O cómico, o fantástico, o plural, o íntimo, o subversivo, podem ser qualidades atinentes também à épica.

Epopeia e drama - O tratado fundacional da teoria literária ocidental, a Poética de Aristóteles, valoriza a epopeia quando esta se serve duma «estrutura dramática». Homero elevar-se-ía acima de todos os outros poetas épicos gregos por ser também um grande poeta trágico na Ilíada e na Odisseia. A questão era definida em termos de configuração estrutural e unidade de acção: os poemas cíclicos, por seguirem uma narrativa histórica e por ser possível extrair deles muitos poemas, eram inferiores aos poemas homéricos, porque destes «não é possível extrair mais do que uma ou duas tragédias» (59 b). A opinião acerca da intrínseca dramaticidade da épica generalizou-se, não sem alguma contestação (p. ex. as cartas sobre o assunto trocadas entre Goethe e Schiller em 1797), todavia insuficiente para a desacreditar no discurso crítico-literário. Estudos mais recentes do fenómeno apontam, contudo, para uma diferença fundamental entre um e outro géneros, na medida em que a epopeia não oferece o conflito intersubjectivo em torno do qual circula a acção dramática, mas antes «apresenta uma dialéctica imobilizada, no sentido em que nenhuma parte do texto oferece uma resolução devida à mediação duma dialéctica posta em movimento» (Conte). Os princípios organizadores da epopeia seriam então os da parataxe e da coexistência paralela de perspectivas independentes, nunca os do entrelaçamento dramático e da orgânica interdependência que Aristóteles teorizou.

Teoria e história (no Ocidente) - O primeiro exemplo conhecido duma epopeia de tipo secundário, na tradição ocidental, é a Argonáutica de Apolónio de Rodes, o discípulo de Calímaco, em 4 livros e quase 6000 hexâmetros gregos, cuja fonte de imitação principal é já a épica de Homero. No entanto, como seria de esperar pela escola alexandrina que representa, o poema de Apolónio opta por qualidades muito diferentes das homéricas, oferecendo, como alternativa à força sobrehumana e superior destreza de Aquiles (Ilíada), ou à inexcedível solércia de Ulisses (Odisseia), um chefe (o mítico capitão dos argonautas, Jasão) diminuído e até criminoso, inferior em relação a outros homens e dominado pelos poderes femininos e mágicos de Medeia. Com Homero (e até certo ponto Hesíodo), a Grécia legou a Roma a cultura épica de Apolónio e, portanto, uma rica e já muito vária interpretação das funções do género, donde não se exclui, por exemplo, a denúncia da futilidade da guerra.

As origens da epopeia na Roma antiga são históricas (a Guerra Púnica de Névio e os Anais de Énio, de que se conhecem apenas fragmentos), depois de terem tomado a forma de uma adaptação de Homero (Odisseia de Lívio Andrónico). Com a Eneida de Públio Virgílio Marão (70-19 a.c.), consagrou-se o padrão do género para o resto da Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Uma das causas do domínio do poema de Virgílio foi, sem dúvida, a sua versatilidade poética e ideológica, uma vez que a exploração simultânea de dois ou mais registos discursivos (Wofford) transformou a Eneida numa fonte infinita de recursos e mecanismos para (re)produção futura. Composto em 12 livros, o poema épico de Virgílio baseia a sua primeira metade na Odisseia de Homero, a história da errância de Ulisses tranformada na viagem de Eneias desde Tróia até ao Lácio, enquanto a segunda metade imita a Ilíada, a história da guerra troiana convertida no combate pela posse de Itália entre Eneias e Turno. Para além do sistema compositivo (imitatio, linguagem, estruturas) que legou de modo impositivo aos vindouros, com Virgílio o Mito foi definitivamente apropriado pela História, aliando-se intimamente ao Estado romano na forma imperial e absolutista que lhe deu Augusto (figurado como descendente directo de Eneias) e, portanto, expondo o sentido da existência da epopeia através do vínculo que a prende à realidade socio-política contemporânea.

A prova disto mesmo está nas mais influentes «respostas» à Eneida entre os poemas romanos seus sucessores, as de Lucano na Guerra Civil (mais conhecida como Farsália) e de Estácio na Tebaida. Muito apreciados e imitados na Idade Média e no humanismo renascentista, apesar das vozes críticas que se lhes opunham por razões retóricas e éticas, ambos os poemas oferecem alternativas de contraste violento em relação aos ideais heróicos augustanos, por intermédio de configurações que, apesar de tudo, denunciam a cada passo a intertextualidade com a Eneida. Se Lucano caracteriza Júlio César, a principal figura da Farsália, como um homem capaz dos mais horríveis crimes para satisfazer a sua ambição desmedida, Estácio opta por contar uma guerra pelo poder entre dois irmãos que acabam por matar-se mutuamente. No entanto, outras possibilidades de expressão épica sem compromissos com o modelo da Eneida nasceram em Roma, as mais importantes sendo o Da Natureza das Coisas (De Rerum Natura) de Lucrécio, poema que contribuiu para uma maior assimilação pelo género épico de material cosmológico e didáctico-filosófico, e as Metamorfoses de Ovídio, onde a matéria mitológica, a liberdade de conexão das histórias e a variedade imaginativa destas produziu larga influência na poesia épica medieval e moderna.

Talvez o mais importante dos factores que determinaram a continuação do género durante a Idade Média tenha sido a cristianização da ideologia. Com efeito, os objectos de análise histórica e política que dominaram a épica romana sofriam agora uma conversão religiosa: as preocupações pela vida na terra eram substituídas, na epopeia erudita medieval, pela ênfase sobre as relações do indivíduo com Deus ou, noutra versão, os termos virgilianos de exaltação do império serviam agora para indicar o caminho da salvação. No entanto, é difícil proceder a uma caracterização absoluta do género nesta época, na medida em que, tal como na Antiguidade, se pode discernir uma grande variedade de elementos, desde o profético-messiânico ao laudatório e até ao satírico (Ward). Mesmo a paródia crítica, interna ao género, não é desconhecida: o Anticlaudianus de Alão de Lille (1128?-1203) decalca, por oposição, o In Rufinum de Cláudio Claudiano (c. 370-410). Parece pois de suma importância apreender a complexidade de modos de expressão englobados na tradição épica, especialmente numa era em que profundas transformações estão a ocorrer simultaneamente em vários níveis sociais (do clero aos trovadores e ao povo), possibilitando práticas épicas completamente divergentes. A fusão possível destas práticas é conseguida na Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), a qual ficará como paradigma supremo dos cânones épicos do seu tempo: o modelo da viagem heróica e a alegoria religiosa, a gravitas temática conciliada com a vernaculidade às vezes cruamente realista, Virgílio como personagem-guia dos objectivos visionários teocêntricos do autor-personagem; enfim, todos os paradoxos do mundo medieval coexistem neste produto culminante e irrepetível. Entretanto, a linha historicamente mais coerente de evolução da epopeia neste período parece possível menos através das múltiplas realizações a que deu lugar do que ao desenvolvimento da teoria do género através dos escólios dedicados à Eneida e a outros poemas romanos, começando por Sérvio Honorato (século IV) e evoluindo no sentido duma crescente alegorização da Eneida e duma mitificação vática de Virgílio, com consequências não despiciendas sobre a suposta mensagem cristã da sua poesia (ideário a que Dante naturalmente não foi alheio).

Esta tendência foi vigorosamente contestada por Francesco Petrarca (1304-1374), o qual, procurando remontar a significação da épica romana às origens clássicas, marcou assim o início do movimento exegético e literário designado geralmente por “humanismo renascentista”. O sentido do discurso épico voltava aos níveis histórico, ético e político, não sem que ficassem as marcas profundas dos procedimentos da alegorese medieval. O género continuou a fundamentar-se na imitação e na hermenêutica da Eneida, paralelamente às possibilidades abertas por poemas como os de Ovídio, Lucano e Estácio, também eles com os seus escoliastas medievais, e a outras práticas da Antiguidade, algumas descobertas, e todas defendidas e disseminadas, pelos humanistas do Renascimento. Quase paralelamente, a tradição dos cantares de matéria troiana, carolíngia e bretã vai sendo assimilada pelos humanistas, começando por Boccaccio (Teseida, Filostrato), ainda no século XIV, até desembocar no Orlando Furioso de Ariosto no primeiro terço do século XVI, releitura em clave cavaleiresca da Eneida e da épica clássica em geral.

Com o Orlando Furioso, a epopeia procede à primeira das recodificações fundamentais da Idade Moderna. Do poema de Ariosto em diante, a imitação erudita deixou pouco a pouco de ser feita tão estritamente sobre o modelo da Eneida, já que o sucesso estrondoso do poema italiano (mais de cem edições só no século XVI) provocou o reforço de certas componentes da epopeia menos trabalhadas pelos humanistas, como o livre entrelaçamento e sucessividade, sem mais conexões, de quadros narrativos e descritivos maravilhosos (já encontrada parcialmente em Ovídio), a desmontagem dos processos laudatórios através duma generalizada e subtil ironia, a mistura descomplexada de materiais das várias correntes do género (prosopopeias do Silêncio ou da Discórdia, deuses pagãos, magia etc.), um renovado privilégio concedido ao amor e à mulher, e a liberdade de fantasia na criação de personagens, no maravilhoso e, até, nas referências históricas e genealógicas. Depois duma primeira fase em que se desenvolveram continuações, “traduções” e imitações estritas do poema de Ariosto, o Humanismo procurou conciliar a herança clássica com a nova épica, afirmando que, apesar dos diferentes procedimentos de representação narrativa, a intencionalidade que presidia ao Furioso era a mesma que se lia em Virgílio, aquela de que Petrarca tinha sido o arauto nos primórdios do Renascimento. Este movimento teórico provocou uma fase experimental de criação na produção épica europeia, em que se procurou o melhor modo de fazer confluir os modelos clássicos com o padrão ariostesco. As dificuldades e tensões que isto provocou na produção do género são patentes na obra de autores como Bernardo Tasso (L’Amadigi, 1560 e Floridante, 1587, póst.), Alonso de Ercilla (La Araucana em três partes, 1569-1578-1589) e Edmund Spenser (The Faerie Queene, 1590-96). O melhor poema desta fase foi Os Lusíadas de Camões (1572).

A instabilidade na criação epopeica provocada pelo modelo épico-cavaleiresco de Ariosto foi substancialmente dominada a partir da publicação (1581) e consagração europeia da Jerusalém Libertada (Gerusalemme Liberata) de Torquato Tasso e dos textos sobre teoria da epopeia do mesmo autor. Com efeito, a partir da década de 1580 em Itália, logo seguido noutros países, dá-se o declínio da influência de Ariosto na produção e na teoria épicas, substituído pelo padrão agora dominante do poema de Tasso. Com este autor, o Humanismo renascentista conseguiu o produto mais próximo do ideal nutrido ao longo de três séculos e, particularmente, a assimilação mais consagrada da épica ariostesca aos modelos greco-romanos. Atinge-se o maior equilíbrio possível entre as narrações da guerra e da errância (virgilianas), por um lado, e do amor (cavaleiresco), por outro, tudo subordinado ao herói perfeito (Godofredo de Bulhões) e à unidade de acção aristotélica. Esta recodificação foi decisiva e, na generalidade, permanente até ao Romantismo.

Assim, no século XVII é talvez a vertente religiosa (para além da burlesca) que é mais procurada. Torna-se cada vez mais contestado o uso do maravilhoso mitológico até aí aceite com naturalidade, e a magia e o fantástico subordinam-se ao que a doutrina cristã (da Reforma e da Contra-Reforma) permite. «Aussi bien en ce temps, ouir parler des Dieux/ En une poesie est souvent odieux / Tasso (...) certaine preuve en fait» (Vauquelin de la Fresnaye, 1605). De facto, sucedem-se os poemas com maravilhoso cristão, assentes na teoria do «maravilhoso verosímil» que Tasso elaborara a partir da Poética de Aristóteles. Por outro lado, uma experiência com bastante sucesso ainda no século XVI, o poema de Du Bartas, La Semaine (1578), e o tratadito teórico do mesmo autor redigido em 1584, facilita a transferência do núcleo temático histórico-político, até então dominante na epopeia renascentista, para as histórias da religião. Contam-se imensos poemas “bíblicos” em vernáculo no século XVII, entre os quais merecem ser destacados, pela qualidade artística e fortuna crítica, La Christiada de Diego de Hojeda (1611) e El Macabeo do português Miguel da Silveira (1638). Entretanto, o retorno aos valores clássicos que, apesar de tudo, Tasso também estimulou, ajudou a promover a substituição da oitava-rima de Ariosto pelo decassílabo branco, já empregue no século XVI por Giangiorgio Trissino (Italia Liberata dai Goti, 1547), pelo depois prolífico e influente Gabriello Chiabrera, no seu primeiro poema épico (Gotiade, 1582), e por Jerónimo Corte-Real (além de outros dois poemas publicados em 1574 e 1578) no Naufrágio e Perdição de Sepúlveda (1594, póst.), o melhor dos originais épicos em verso solto da Europa quinhentista. O ápice da tendência que relacionava, cada vez mais, a solenidade classicista, avessa à oitava, com a temática bíblica, foi atingido pelo Paraíso Perdido (Paradise Lost) de John Milton (1667), a melhor epopeia de Seiscentos.

É também no seguimento da actividade literária de Tasso, particularmente dos Discorsi del Poema Eroico publicados em 1594, que atinge intensidade inusitada o interesse pela teoria da epopeia. Multiplicam-se os prólogos, avisos, tratados maiores ou menores, debates e polémicas, quer com interesse prescritivo para a produção contemporânea, de que talvez o exemplo mais rico seja o da França entre 1630 e 1700, quer por necessidade de exegese e confronto de poemas com as normas, normas essas que, mais ou menos conscientemente, dependiam do paradigma teórico tassiano. Bom exemplo deste último tipo é o surto de textos de poética da epopeia, centrada na crítica e na polémica sobre Os Lusíadas, que se produziram com particular vigor em torno da cidade de Évora na primeira metade do século XVII. Toda uma redefinição do género épico passa também por esses esforços de racionalização teórica, agora tão frequentes quanto os de produção literária.

Esta proximidade entre teoria e prática foi-se apertando progressivamente de modo que, na França da segunda metade do século XVII, e durante momentos posteriores em outros países, a preceptiva atingia o ponto máximo de regulamentação, sendo talvez o Traité du poème épique de Le Bossu (1675) o mais lídimo representante do absolutismo aristotélico a que se chegara. Todavia, algumas das componentes vitais da teoria continuavam a ser alheias à doutrina poética de Aristóteles, nomeadamente o princípio do efeito didáctico sobre o receptor, princípio este que, apesar das tendências barroquistas em atribuir prioridade ao deleite artístico (manifestado em obras proto-épicas como o Adone de Marino e as Soledades de Gôngora), nunca deixou de vingar na epopeia. A doutrina racionalista, a organicidade na estrutura dos poemas e a ênfase sobre os aspectos morais colocavam como que uma camisa-de-forças sobre uma vasta produção épica que, mesmo com L’Henriade de Voltaire (1723-28), a mais internacionalmente discutida das epopeias do tempo, não conseguiu senão inêxitos quase universalmente reconhecidos. Foi na época neoclássica, no entanto, que a teoria da epopeia de índole dedutiva, concentrada nas estruturas do texto e destinada à aplicação prática, atingiu o seu ponto de maior maturidade. A polémica entre Francisco de Pina e Melo e José Xavier de Valadares e Sousa acerca dos poemas Triunfo da Religião (1756) e Conquista de Goa (1759) do primeiro, é possivelmente o melhor exemplo português da atenção rigorosa e meticulosa do neoclassicismo sobre os vários aspectos individuais da teoria da epopeia, buscados principalmente na Poética de Aristóteles e nos textos de Boileau, Muratori e Luzán. Por seu turno, é agora também que a epopeia atinge o seu ponto máximo de distância em relação ao estilo misto que caracterizara a Comédia de Dante. A hierarquia do neoclassicismo épico tem apenas um nível, quer na linguagem, quer na sociedade: o elevado.

Entretanto, ao mesmo tempo que se íam esgotando as tentativas de racionalização da composição épica, nascia um novo interesse pelos cantares da tradição oral e uma nova preocupação pelas origens espirituais das nações. O caso mais célebre foi o da aceitação generalizada do falso Ossian (o poeta preferido de Napoleão), suposto autor duma epopeia primitiva intitulada Fingal, escrita afinal por Macpherson (1736-1796); mas é também no século XVIII que começam os estudos “antropológicos” sobre as chansons de geste, sobre o herói irlandês Cuchulain etc., processos que se desenvolvem à medida do declínio da poética neoclássica em favor do Romantismo. A crítica normativa e estrutural tornava-se agora deficiente nos objectivos, desadequada em relação ao objecto e insustentável para a liberdade artística. Os teóricos românticos vão abandonando a exegese dos clássicos greco-latinos e renascentistas em favor do estudo das mitologias, das lendas e do substrato genético donde as epopeias teriam nascido.

A epopeia erudita dissemina-se então numa nunca vista pluralidade de formas, que os próprios autores do século XIX, ou eram avessos em classificar, ou classificavam dos modos mais vários. Talvez se possa, contudo, englobar a maioria das produções narrativas oitocentistas no âmbito do retorno ao mito e ao folclore, quer na Europa, quer particularmente nas novas nações em formação das Américas. Entretanto, a epopeia começa também a alastrar para formas de arte como a ópera ou drama musicado de Richard Wagner, o romance de Tolstoi e o cinema de Griffiths ou Eisenstein. Os poemas longos do anglo-americano T. S. Eliot (The Waste Land), do franco-caraíba Saint-John Perse (Anabase; Amers) e do brasileiro Jorge de Lima (Invenção de Orfeu), nos seus estilos completamente diversos, oferecem muito do melhor que a epopeia produziu no século XX, a expressão sincrética mas descontínua da vida contemporânea, centrada no poeta como herói demiurgo. Esta estética ainda fundamentalmente romântica não deixa, no entanto, de recorrer aos textos do passado, buscando neles, talvez, os modos de expressão capazes de definir e compreender uma cultura, afinal o propósito que parece ter estado sempre nas origens da epopeia.



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Hélio J. S. Alves

POÉTICA

Falar da poética como uma das disciplinas clássicas dos discursos implicará constante referência à retórica, na qual muitas vezes a poética se achará subsumida, sem embargo de se poder apontar também certo empenho de distinção relativa desta em face daquela.

Assim, as artes retóricas sempre reconheceram os poetas como pioneiros e modelares, deles extraindo exemplos ilustrativos, que apresentam as vantagens de serem ao mesmo tempo concisos, memoráveis e talvez já familiares (cf. Dixon,1971, p. 51); depois, contudo, com a generalização da retórica, ocorre uma inversão: “Tendo aprendido da poesia, especialmente em assuntos de estilo, a retórica aceitou os poetas como seus discípulos aptos e predispostos” (ibid., p. 52).

Convém iniciar portanto por um levantamento analítico do influxo da retórica sobre produções discursivas hoje incluídas no campo literário: por via da educação recebida — de base retórica, da antigüidade ao século XVIII —, os escritores conduziram muitos elementos retóricos para a sua produção, entre eles os tópicos ou lugares-comuns; no sistema de ensino medieval, que não incluiu a poética entre suas disciplinas, a posição da poesia no trivium oscilava entre retórica e gramática; para a fusão entre retórica e poética concorreu a circunstância de, já na antigüidade, ter-se alargado o âmbito da primeira, que deixa de ater-se à persuasão para ocupar-se com o bem dizer em geral; entre as modalidades literárias, diversos gêneros se caracterizam pela cooperação entre as duas disciplinas clássicas do discurso, desde aqueles em que a importância da persuasão e da argumentação é evidente — sátira, obras éticas, poemas didáticos, epistolografia —, até os que implicam certas adaptações e/ou absorção de atributos de extração retórica — o panegírico poético, procedente das orações demonstrativas; o interlúdio dramático e a peça de moralidade, que absorvem o “debate” retórico; o aforismo moral, decorrente da discussão aristotélica dos lugares-comuns e máximas; os poemas líricos, freqüentemente, por exemplo, verdadeiras miniaturas de orações demonstrativas que têm por causa a beleza feminina; o romance epistolar, de certo modo expansão do gênero retórico das cartas familiares (cf. Dixon, p. 45-58, passim).

Ainda quanto às origens das relações entre retórica e poética, é comum se invocar o caso de Górgias, que, ao estender à prosa a linguagem elaborada e ornamental em princípio apanágio da poesia, determina uma confluência entre as duas esferas, podendo-se considerar portanto o seu Defesa de Helena tanto uma arte retórica quanto uma arte poética pré-aristotélica (cf. Barthes, em Cohen et alii, 1971, p. 152-3; Aristóteles, 1966, p. 165; Plebe, 1968, p. 12-3; Dixon, 1971, p. 35).

Em Aristóteles, porém, a separação relativa entre as duas disciplinas se configura no fato de ele ter escrito dois tratados distintos dedicados a cada uma delas, ainda que as remissões recíprocas presentes na Retórica e na Poética apontem também para a sua proximidade. Considerando o modelo aristotélico, pode-se dizer que, enquanto a retórica se ocupa sobretudo com oratória, raciocício e persuasão, a poética lida principalmente com poesia, mimesis, verossimilhança e catarse.

Cícero, por sua vez, reconhecendo embora os pontos de contato, se esforça em demonstrar as diferenças entre eloqüência e poesia, a ele se atribuindo a autoria da sentença que se tornou proverbial: “Nascimur poetae, fimus oratores” (cf. Ronai, 1980, p. 115 e 140). Seu quase contemporâneo Ovídio, no entanto, é explícito quanto ao reconhecimento da interpenetração entre as artes retórica e poética, tendo declarado numa epístola em versos dirigida a um professor de retórica: “... assim como minhas cadências recebem vigor de sua eloqüência, eu proporciono brilho às suas palavras” (apud Dixon, 1971, p. 52).

Outros testemunhos antigos importantes da interpenetração entre as duas disciplinas se encontram em dois pequenos e influentes tratados escritos sob a forma de epístolas, a Arte poética, de Horácio (não obstante o título), e o Sobre o sublime, cuja autoria é hoje geralmente atribuída a um certo Hermágoras, do século I d. C. (cf. Plebe, 1968, p. 76-7). Por fim, ainda no que concerne à antigüidade, cabe referência às posições de Tácito e de Quintiliano, que assinalam a estreiteza dos laços entre eloqüência e poesia, reconhecendo no entanto as diferenças que separam as duas artes (cf. Plebe, 1968, p. 71-2; Barthes, em Cohen et alii, 1975, p. 161-2).

Durante a idade média, domina a identidade entre retórica e poética, ou, em termos talvez mais precisos, o “... campo [retórico] engloba três cânones de regras, três artes”(Barthes, em Cohen et alii 1975, p. 168): 1º- artes sermocinandi (área da retórica stricto sensu, isto é, arte oratória, então representada pela sermonística cristã); 2º - artes dictandi (área da correspondência administrativa, impulsionada pela organização da administração pública sob Carlos Magno); 3º - artes poeticae (área da criação poética em sentido estrito, constituída por retóricas com matéria adicional sobre versificação [cf. Dixon,1971, p. 52]).

Mas no limiar da idade moderna começaria a se reforçar a distinção entre retórica e poética. Em fins do século XV já se observa oposição entre a Primeira Retórica (ou retórica geral) e a Segunda Retórica (ou retórica poética), da qual teriam derivado as artes poéticas do classicismo moderno (cf. Barthes, em Cohen et alii, 1975, p. 168). Tendo em vista, no entanto, o caráter acentuadamente retórico de tais poéticas (veja-se, por exemplo, a de Boileau — L’art poétique, 1674 — e a de Pope — Essay on criticism, 1711), pode-se pôr em dúvida a diversificação de esferas apontada. Nesse sentido, parece mais aceitável outra sugestão do mesmo Barthes (ibid., p. 174-5): com a entusiástica redescoberta da Poética de Aristóteles ocorrida em fins do século XV, a arte poética torna-se o código da “criação” literária, sendo cultivada por autores e críticos, ao passo que a arte retórica, tendo por objetivo o “bem escrever”, se restringe ao âmbito do ensino, sendo um domínio de professores, especialmente jesuítas.

Na mesma linha da hipótese de Barthes quanto ao caráter moderno da separação entre retórica e poética pronuncia-se João Adolfo Hansen. Inicialmente, ele mostra que, sem embargo da diferenciação antiga entre a mimesis utilitária da oratória e a mimesis concentrada da poesia, também o poeta visava à persuasão do público, razão por que tanto o discurso oratório quanto o poético se retoricizam; depois, sobre o fortalecimento daquela distinção, tão esbatida no mundo antigo, conclui: “A nossa distinção de retórica/poética talvez seja (...) também um produto terminado no século XVIII: desaparece a retórica, a poética se torna a disciplina da autonomização da arte como estilística de efeitos desinteressados”(Hansen, 1994, p. 59).

Para concluir, será conveniente situar tanto a superação histórica da poética quanto os modos renovados de sua presença.

Havendo verificado a persistência dos vínculos entre retórica e poética, que afinal implicou verdadeiro sincretismo destas duas artes, deve-se inferir que o processo de descrédito da poética como uma das disciplinas clássicas dos discursos coincide com aquele que conduziu à ruína da retórica. A propósito disso, portanto, remetemos o leitor às considerações feitas no verbete retórica, em que tratamos da obliteração das práticas retóricas (ou, talvez mais precisamente, retórico-poéticas).

Quanto aos modos de permanência da poética, podem eles ser observados mediante o exame dos sentidos que se atribuem ao termo poética depois da superação histórica da disciplina que inicialmente nomeava, isto é, sentidos correntes do século XIX em diante.

Observe-se de saída que, se a palavra retórica assumiu um significado pejorativo, o mesmo não se passou com o vocábulo poética. Acreditamos poder associar esse fato à observação de João Adolfo Hansen há pouco referida, segundo a qual, extinta a retórica no século XVIII — ou, mais precisamente, vendo-se rebaixada à condição de responsável por um palavreado rotineiro e oco — , a poética se apresenta como sua sucessora, consumando-se desse modo a distinção entre as duas disciplinas, até então impossível praticamente de ser estabelecida. Assim, conservando dignidade de sentido, a poética se credencia a herdar o que sobrou da retórica: a elocução, concebida, em chave romântica, como estudo de dispositivos lingüísticos aptos à manifestação da subjetividade mediante ruptura de normas. Tendo por objeto uma elocução psicologizada, e vista como o âmago da literatura, a poética torna-se então “...a disciplina de autonomização da arte como estilística de efeitos desinteressados” (Hansen, 1994, p. 59). O termo assim se desvencilha da idéia de preceptística, receituário retórico de poesia, passando a designar a investigação sistemática da natureza e funções da literatura, nomeando a disciplina nuclear dos estudos literários contemporâneos. Os demais significados que marcam o curso da palavra a partir do século XIX encontram unidade nessa acepção mais ampla, de que constituem derivações redutoras da generalidade. Desse modo, poética significará também determinado entendimento de poesia — ou de literatura em geral — característico de certo autor, época ou gênero literário, depreensível das obras por meio de análise, donde expressões como “poética de Gonçalves Dias”, “poética do modernismo”, “poética do romance”. Finalmente, em âmbito ainda mais particularizante, a palavra designa poemas em que um poeta expõe, em tom de manifesto, seu modo específico de conceber e praticar a poesia, podendo tais poemas receber títulos variados ou a denominação explícita de “poética” ou “arte poética” (entre inúmeros exemplos, citemos: “Antífona”, de Cruz e Sousa; “Poética”, de Manuel Bandeira; “L’art poétique”, de Verlaine).

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Roberto Acízelo de Sousa

RETÓRICA

A gênese da retórica se explica usualmente por uma circunstância histórica bem precisa, de ordem sócio-política. Na Sicília do século V a. C. dois tiranos — Gelon e Hieron —, visando a povoar Siracusa, transferem populações, expropriam e redistribuem terras; depostos numa rebelião, abrem-se processos para a devolução das propriedades aos antigos donos, mobilizando-se assim grandes júris populares. Convinha então às partes em litígio a maior eficácia possível no uso do discurso, para persuadir de suas razões os julgadores; com a utilidade desse modo posta em voga, os recursos da eloqüência começam logo a ser sistematizados, tornando-se objeto de uma arte, no sentido antigo deste termo. Ainda no mesmo século V a. C. a retórica seria introduzida na Ática, onde se desenvolveria favorecida por uma situação social e política semelhante à da Sicília, marcada pela livre reivindicação de direitos por via judiciária (cf. Barthes, em Cohen et alii 1975, p. 151).

Mas é provável que não sejam assim tão simples os fatores implicados na origem da disciplina; se tudo se reduzisse à mera determinação por uma conjuntura histórica particularíssima, como seria possível explicar a permanência não só das técnicas retóricas, mas de verdadeira mentalidade de conformação retórica ao longo de toda a história ocidental, portanto muito para além da extinção completa da circunstância que a teria gerado? Como não cabe aqui o aprofundamento dessa questão, deixamos apenas apontado que o problema é mais complexo: sem negar a ação pontual dos fatores político-sociais referidos, é preciso reconhecer que a retórica tem raízes mais fundas, como indiciam, por exemplo, a valorização da linguagem na poesia homérica — seus heróis são pródigos em discursos longos e pomposos, e a narrativa com freqüência se refere às próprias palavras e noções conexas — , bem como sua transformação em tema filosófico privilegiado desde as cogitações de pensadores anteclássicos.

Voltemos, no entanto, ao terreno historiográfico, ainda que, no caso que nos ocupa, os “fatos” quase se diluam na lenda, precariamente reconstituídas que são a partir de relatos de escritores antigos.

Estabelecida na Sicília no século V a. C., a retórica terá como primeiros cultores a Empédocles, Córax e Tísias. Já nesse momento nebuloso de suas origens, a disciplina conheceria duas linhagens: 1ª- uma demonstração técnica e racional do verossímil; 2ª- uma psicagogia (literalmente, “condução da alma”), isto é, exploração do potencial de sedução da palavra, aquém ou além de sua inteligibilidade. A primeira linhagem aspira a tornar mais potente o discurso válido de uma perspectiva lógica, tendo como fontes Córax, Tísias e Protágoras; a segunda, mergulhada em princípios pitagóricos — magia, medicina e música como terapias — e parmenídicos — distinção entre a via da verdade e a da opinião —, pretende trabalhar o fascínio enganador a que se presta a palavra, originando-se no pensamento de Empédocles, para daí passar a Górgias e depois a Isócrates (cf. Plebe, 1968, p. 3-6, passim).

A partir de fins do século V a. C. a retórica entra num período que ficou melhor documentado, podendo-se dizer, contudo, que a controvérsia já referida, entre a arte da palavra como embalagem do raciocínio ou como encantamento e ilusionismo, se transforma em verdadeiro mote do debate filosófico que atravessaria os séculos. Desse período, são de se destacar as obras de Platão — que em geral reagiu contra a retórica enquanto hipertrofia da linguagem como forma sedutora, ou então a avaliou positivamente, desde que identificada com a dialética — e de Aristóteles — que lhe dedicou um tratado específico destinado a ampla influência, concebendo-a como técnica rigorosa de argumentação e como arte do estilo, além de estudá-la sob os pontos de vista do ethos do orador e do pathos dos ouvintes.

No âmbito grego a retórica seguiria sua carreira: teve muita importância entre os estóicos (século IV - III a. C.), floresceu na época de Augusto (século I a. C. - I d. C.) e conheceu o ocaso com a chamada segunda sofística, entre os séculos II e IV d. C. (cf. Plebe, 1968, cap. IV a VI).

A partir do século I a. C. torna-se também latina: Cícero (século II - I a. C.) desenvolve a prática da retórica aristotélica e sustenta o caráter intercomplementar de retórica e filosofia; o tratado de autoria anônima Rhetorica ad Herennium (século I a. C.) divulga e populariza as fontes gregas, firmando a terminologia retórica em latim; Quintiliano (século I - II d. C.) estabelece a pedagogia da retórica aristotélica.

Nessa altura, através de sucessivas retomadas, a arte de bem dizer — definição proposta por Quintiliano (“... rhetoricen esse bene dicendi scientiam [...]” [s.d., p. 254.]) — já se apresenta sob a forma de uma unidade, verdadeira superinstituição ocidental, cujo poder de modelização, extrapolando a circunscrição originária constituída pelos discursos públicos orais em geral, alcança a conversação e os diversos tipos de composições escritas. Nessa vasta rede de conceitos e preceitos tornaram-se consensuais algumas distinções.

Inicialmente, existe a diferenciação entre os grandes gêneros da eloqüência, segundo a categoria dos destinatários e a situação da causa em referência ao tempo: o judiciário, próprio dos tribunais, cujos ouvintes se pronunciam em veredicto sobre certos fatos situados no passado; o deliberativo, das assembléias populares e políticas, em que a audiência se manifesta sobre os rumos futuros a observar na vida civil; o epidítico ou demonstrativo, inerente às cerimônias públicas e aos rituais, atento a uma situação presente que induz o louvor ou a censura por parte de quem fala, cabendo aos ouvintes o papel de espectadores das habilidades do orador.

Há também a distinção entre as partes da retórica, que visa a dar conta das fases percorridas na elaboração e execução de um discurso, nomeadas com os seguintes termos tradicionais gregos e latinos: eresis ou inventio (invenção; achar o que dizer); taxis ou dispositio (disposição; pôr em certa ordem o que se tem a dizer); lexis ou elocutio (elocução; colocar os ornamentos do discurso); hypocrisis ou pronuntiatio (pronunciação; proferir o discurso, tendo em vista a dicção e a gesticulação adequadas); mneme ou memoria (memória; confiar o discurso à memória).

Mas, conquanto a retórica tenha efetivamente assumido essa feição de unidade, sobretudo em suas versões mais didáticas, é preciso ter em conta o caráter apenas aparente dessa unidade, ou de construção a posteriori: “...falamos hoje de ‘a Retórica’, mas é bastante seguro dizer que a prática retórica efetiva nunca teve, enquanto prática datada e situada, a generalidade formal pressuposta na expressão” (Hansen, 1994, p. 9).

Retomemos agora o percurso histórico da retórica, com base na cronologia estabelecida por Roland Barthes (op. cit., p. 223-4).

No século IV d. C. e no século V, respectivamente Ausônio e Sidônio Apolinário transmitem à idade média a chamada neo-retórica, elaborada durante o período da segunda sofística; Santo Agostinho (séculos IV-V) e Cassiodoro (séculos V-VI) põem a retórica a serviço do pensamento e proselitismo cristãos, e Beda (séculos VII-VIII) a aplica à Bíblia; Marciano Capela (século V) a inclui entre as sete artes liberais (com gramática, dialética, geometria, aritmética, astrologia e música), e Alcuíno (século XI), na sua reforma das escolas que introduz o septennium, conserva-lhe um lugar no trivium (junto com gramática e dialética), no que seguia o sistema que já tinha precedentes em Boécio (séculos V-VI) e Santo Isidoro de Sevilha (séculos VI-VII); Boécio é ainda o responsável pelo primeiro retorno a Aristóteles nos tempos medievais (estudo da lógica restrita), a que se seguiriam a tradução árabe do século IX e sua segunda retomada, processada no século XII pelo estudo da lógica integral.

Tais são alguns dos nomes e eventos que promovem a continuidade da retórica por toda a idade média. Seus reveses, porém, já então têm início: o lugar de preeminência que conservou no trivium entre os séculos V e VII passa a ser ocupado primeiro pela gramática — século VIII a X — e depois pela dialética — século XI a XV (cf. Barthes, em Cohen et alii, p. 167); por fim, no limiar dos tempos modernos, Petrus Ramus (século XVI) propõe uma redução do seu campo, argumentando que a inventio e a dispositio na verdade pertenciam à dialética, cabendo à retórica apenas a elocutio, a pronuntiatio e a memoria (cf. Dixon, 1971, p. 46). Assim, a partir da difusão das idéias ramistas, a retórica vai tendo a influência reduzida, podendo-se dizer que sua posição de relevo não ultrapassa o século XVIII. Vejamos as causas e estágios desse processo de esvaziamento.

O sentido depreciativo da palavra retórica já se acha bem fixado no início do século XVII; a disciplina sucumbe a um ataque simultaneamente moral e estético, que tem no Górgias de Platão referência fundamental (cf. Dixon, 1971, p. 64). Contribuíram ainda para o descrédito da retórica: o contraste entre “pensamento real” e “ornamento insubstancial”, a que se vincula a já mencionada proposição de Petrus Ramus; a crítica rejeicionista de Montaigne e Bacon, defendendo a precedência de res sobre verba; a disseminação do espírito científico, valorizando a pesquisa e a descoberta, contra a autoridade e a imitação, e erigindo a clareza, entendida como eliminação de ornamentos, em novo padrão do estilo da prosa, especialmente adequado aos relatórios científicos e discussões, segundo proposta da Royal Society of London no século XVII; o empenho de Locke em defender o caráter essencialmente comunicativo da linguagem, cuja clareza se veria prejudicada pela obscuridade das figuras; a combinação de gêneros — que a retórica pretendia puros — promovida pela tragédia burguesa e a comédia sentimental; a mudança do conceito de poesia operada pelo romantismo, segundo a qual esta deixa de ser uma arte pública sujeita a julgamento por critérios externos de ordem moral para tornar-se privada, sem nenhum fim ulterior e moralmente autônoma; a oposição proposta por Mill entre retórica e poesia; o pensamento de Croce, condenando a classificação por gêneros e exaltando a indivisibilidade da arte e a intuição; os “esquemas de caráter” impostos pelo treinamento retórico, que teriam conduzido a uma visão dos seres humanos segundo estereótipos, refratários portanto a qualquer complexidade psicológica e ética; a impugnação das formas retóricas por sua inadaptabilidade ao debate e à controvérsia, já que reduziriam os argumentos a oposições polares, donde a decidida opção contemporânea por expressões como diálogo e diálogo contínuo, que nomeiam práticas mais aptas para a acomodação dos pontos de vista conflitantes do que as disputações retóricas; a perda de confiança na eficácia do próprio ensinamento flagrante nos manuais de retórica do século XIX, que se tornam por isso prudentes e repetitivos (cf. Dixon, 1971, p. 65-70).

Nesse desabamento generalizado, salvam-se porém alguns compartimentos do grandioso edifício da retórica. Das cinco operações que a princípio comportava, com o abandono daquelas de natureza não essencialmente lingüística — inventio, dispositio, pronunciatio e memoria — , acaba sobrando apenas a elocutio, como uma “...teoria de afastamento, desvio ou rupturas discursivas, que passam a fazer parte dos manuais de gramática com o nome geral de ‘Tropos e figuras’ ou ‘Figuras de estilo’” (Hansen, 1994, p. 37). Também sobrevive uma das virtudes da elocução capituladas pela retórica — a clareza — , absorvida pela mentalidade científica como antídoto contra o ornato, outra virtude do mesmo preceituário retórico. Assim, como um treinamento apropriado para a obtenção de clareza e ordem nos escritos, a retórica continuará sendo básica na educação secundária e universitária, pelo menos até o final do século XVIII. No entanto, a partir do século XIX sua presença se retrai de modo drástico; perdendo posição no sistema de ensino e sendo expulsa da literatura com o triunfo das idéias românticas de expressão e subjetividade, ela parece reverter a dimensões anteriores à absolutização do seu espaço: “Começa a parecer que a retórica refluiu de uma vez por todas aos domínios originais ou a seus equivalentes modernos: o púlpito e os tribunais, a tribuna política e o salão de conferências” (Dixon, 1971, p. 70).

Mesmo o departamento retórico da elocução, contudo, sofreria ainda reduções, como assinala Gérard Genette em suas considerações sobre o que chama “o grande naufrágio da retórica” (em Cohen et alii,1975, p. 139): confina-se já nos séculos XVIII e XIX aos tropos e figuras — ou, mais rigorosamente, à fusão dessas categorias sob a égide da primeira — (ibid., p. 131-2); e no século XX, com os formalistas Eikhenbaum e Jakobson, chega-se ao par metáfora/metonímia (ibid., p. 133), enquanto outras teorias poéticas, indo mais fundo na redução e supervalorizando a idéia de analogia, preservam apenas a metáfora como último resíduo da retórica, apresentando-a como essência final da linguagem poética e até da linguagem em geral (ibid., p. 139), o que teria conduzido a um emprego abusivo e conceitualmente esvaziado das noções de imagem e de símbolo (ibid., p. 143-5).

Mas ainda que virtualmente extinta enquanto o conjunto de práticas referidas por Roland Barthes (op. cit., p. 148-9) — uma arte (no sentido clássico do termo), um ensino, uma ciência, uma moral, uma instituição social, uma atividade lúdica —, a retórica, ou, mais precisamente, alguns de seus fragmentos sobrevivem, sob a forma de objeto ou motivação de certos empreendimentos intelectuais do século XX bastante heterogêneos. Vejamos alguns, que recolhemos em indicações de Barthes (op. cit.), Lacoste e Gunthner (em Cohen et alii, 1975) e Hansen (1994): a estilística; o formalismo eslavo; o new criticism anglo-americano; o estruturalismo e a semiologia dos anos 60; a psicanálise; o pensamento dito pós-estruturalista de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard; a pedagogia da redação; a filosofia analítica; a teoria da argumentação.

Bibliografia: Aristóteles. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, s. d.; Baird, A. C. Rhetoric: a philosophical inquiry. 1965; Bitzer, L. F. & Black, E. The prospect of rhetoric. 1971. Bizzel, Patricia & Herzberg, Bruce, ed. The rhetorical tradition; a reading from classical times to the present. Boston: Bedford Books of St. Martin’s Press, 1990; Black, Edwin. Rhetorical criticism; a study on method. 1978; Booth, W. The rhetoric of fiction. 1961; ------. The rhetoric of irony. 1974; Brandt, W. J. The rhetoric of argumentation. 1970; Bryant, D., ed. The rhetorical idiom; essays in rhetoric, oratory, language and drama. 1958; Canavan, J. Rhetoric and literature. 1974; Cohen, Jean et alii. Pesquisas de retórica. Petrópolis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1975; Curtius, Ernst Robert. Retórica. In: ---. Literatura européia e idade média latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p. 64-81; D’Angelo, Fr. A conceptual theory of rhetoric. 1975. Dixon, Peter. Rhetoric. London: Methuen, 1971; Dubois, Jacques. Retórica geral. São Paulo: Cultrix, 1974; ------. Retórica da poesia. São Paulo: Cultrix, 1980; Fumaroli, Marc. L’age de l’eloquence. Genèvre: Droz, 1985; García Berrio, Antonio. Retórica. 1990; Hansen, João Adolfo. Retórica; Seminário UERJ 1994. [São Paulo] s. ed., 1994. Xerografado; Hochmuth-Nicols, M. Rhetoric and criticism. 1963; Lausberg, Heinrich. Elementos de retórica literária. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1966; ------. Manual de retórica literaria. Madrid: Gredos, 1968-76. 3 v.; Lotman, Juri M. Retórica. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1989. V. 17; Mailoux, Steven. Rhetorical hermeneutics. Critical inquiry, 11, 1985; Murphy, J. J. Rhetoric in the middle ages; a history of rhetorical theory from St. Agustine to Renaissance. 1974; Perelman, Chaim. O império retórico: retórica e argumentação; ------ & Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. 1966; Plebe, Armando. Breve história da retórica antiga. São Paulo: E.P.U./Edusp, 1978; Poétique, 5 (rhétorique et philosophie), 1971; Quintilian. Institution oratoire. Paris: Garnier, s. d.; Rhétoric a Hérenius. Paris: Garnier, s. d.; Russel, D. A. & Winterbotton, M., ed. Ancient literary criticism; the principal texts in new translations. Oxford: Clarendon Press, 1978; Smith, Adam. Lectures on rhetoric and belles lettres. Indianapolis [USA]: Liberty Classics, 1985; Varga, A . K. Rhétoric et littérature. 1970.





Roberto Acízelo de Souza

Estilística

Disciplina que se ocupa dos efeitos produzidos pela linguagem que se utiliza num dado contexto e com um dado fim. Distingue-se habitualmente da gramática, porque não se ocupa das formas linguísticas e das funções que desempenham na comunicação verbal. É, no entanto, de aplicação muito diversa no campo da linguística. Pode referir-se hoje a toda a análise linguística do texto literário, procurando as marcas específicas (figuras de estilo ou estruturas sintácticas, por exemplo) que ajudam a diferenciar um texto de outro, o que pode permitir determinar o modo particular de um dado escritor se exprimir literariamente. A estilística pode promover o estudo de todas as operações internas do texto literário, servindo-se de outras disciplinas como a semiótica, a gramática, a sociolinguística, a prosódia, a retórica, etc. A crítica literária e a história da literatura não dispensam este tipo de análise no seu trabalho judicativo-performativo dos textos literários. Admitindo que se trata de uma das grandes disciplinas da linguística em geral, a estilística recorre hoje às terminologias e metodologias linguísticas para classificar, avaliar ou identificar recursos como metro, ritmo, som, sintaxe, semântica, linguagem figurativa, simbologia, etc. Este trabalho estilístico pode incluir, nos casos em que existe uma clara tentativa de produzir uma análise científica e exacta do texto literário, o levantamento estatístico e computorizado da frequência de certos recursos num dado texto ou na obra de um dado escritor. Um estudo pioneiro em português neste campo é o de Maria de Lourdes Belchior Itinerário Poético de Rodrigues Lobo (1959), exemplo de aplicação da estilística à construção do perfil literário de um escritor através dos artifícios da sua escrita.

Enquanto forma de estudo da literatura, podemos dizer que a estilística existe desde os estudos retóricos de Aristóteles, Quintiliano e Cícero, que viam no estilo a melhor forma de adornar o pensamento. Este pressuposto vai prevalecer até ao Renascimento e conduz, inclusive, a várias tentativas de codificação dos artifícios literários. Neste sentido, a estilística foi até ao século XX uma espécie de ciência exacta capaz de fornecer os dados técnicos necessários à produção de um discurso literário. Não existe a rigor, distinção clara entre a retórica e a estilística, porque o que importava era a apreciação de um estilo individual, por exemplo, como nos códigos medievais, que distinguiam os estilos sublime, médio e simples. Não, verdadeiramente, interpretação ou análise literária das características da expressão linguística individual, mas apenas um inventário dos recursos obtidos pela linguagem num dado contexto.

Primeiro La Stylistique (1955) e depois em Essais de stylistique (1969), Pierre Guiraud subdividiu a história da estilística no século XX em vários tipos, que sintetizamos: (1) Estilística estrutural ou da expressão, que corresponderá aos primeiros trabalhos de Charles Bally e Karl Vossler. Bally (1865-1947), autor de Tratado de Estlística Francesa (1909), discípulo de Saussure, serve-se de premissas da linguística saussureana para inaugurar a linhagem linguística da estilística, interessada na pesquisa dos chamados recursos expressivos do sistema da língua, isto é, aquilo que no fundo constitui o colorido da expressão verbal. (2) Estilística genética ou do indivíduo, uma variante que tende a acentuar o vínculo do texto literário a uma matriz psicológica. Destacam-se nesta acepção Leo Spitzer (Études de style, 1970) , que reagiu à postura então predominante no estudo das obras literárias, que eram vistas como veículos para esclarecimento de outras realidades, que não as da própria obra, propondo então uma aproximação às teorias freudianas, associando a criação literária ao psiquismo do autor, porque se parte do princípio de que a obra de arte está dependente do temperamento do indivíduo, da sua cultura e da sua visão pessoalíssima do mundo. Este tipo de estilística, que também toma o nome de idealista, inclui ainda os trabalhos de K. Vossler (1972-1949), discípulo de Benedetto Croce (1866-1952), que constrói a sua obra sobre a ideia da língua como continuada criação individual, fundando a estilística como estudo de obras literárias individuais, a partir do conceito-chave de estilo literário como desvio da norma linguística colectiva. Próxima desta variante da linguística, podemos destacar a escola espanhola, com Dámaso Alonso e Amado Alonso à cabeça. Esta escola procurará criar uma “ciência do estilo”, entendendo por estilo o que é peculiar e diferencial numa fala. Para isso, existem três graus de conhecimento da obra: o do leitor, através de uma intuição totalizadora, que reproduziria a intuição do autor, da qual se teria originado a obra; o do crítico, como um leitor excepcional, capaz de exprimir artisticamente as intuições profundas da obra; e o da análise científica, tarefa da Estilística, que, por ser científica, não atingiria a essência na obra, somente acessível à intuição. Importante é a revisão que D. Alonso faz do conceito de signo linguístico na teoria de Saussure, procurando mostrar existem outros “significantes parciais” a ter em conta na definição redutora do significante como simples resultado de uma imagem acústica e/ou visual, quando o tom, a intensidade, a velocidade, a matiz vocálica, etc, podem interferir na expressão conceptual do signo. Neste campo, são ainda importantes os estudos reunidos em Introduccion a la estilística romance, de K. Vossler, L. Spitzer e H. Hatzfeld, que D. Alonso traduziu para castelhano em 1932, oferecendo à escola espanhola uma obra de referência programática. (3) Estilística funcional, representada nas teorias de R. Jakobson sobre a comunicação verbal que afectaria todos os valores estílisticos; (4) Estilística textual, praticada por M. Cressot, J. Marouzeau, M. Riffaterre, e outros, circunscrita à análise de textos do ponto de vista dos seus aspectos estilísticos. A abordagem de Riffaterre é, contudo, mais próxima da chamada Estilística estrutural, que procura aplicar ao texto literário os mesmos princípios da linguística estrutural e da gramática generativa.

Regista-se ainda uma outra variante da estilística que insiste na sua ligação com a literatura através de factores sociais e ideológicos. Estão neste caso Erich Auerbach e Carlos Bousoño, este último um discípulo de Alonso. Bousoño evitou as análises literárias limitadas ao momento de produção da obra de arte e propês que se alargasse a crítica literária à investigação ou interpretação do eu individual do escritor em correspondência com o seu eu social.



ESTILO; RETÓRICA



http://www.filologia.org.br/anais%20III%20CNLF%2027.html



BIB.: Anna Maria Viegas: “Conceitos de Estilística”, Cadernos de Linguistica e Teoria da Literatura (1982); Bennison Gray: “Stylistics: The End of a Tradition”, Journal of Aesthetics and Art Criticism, 31 (1973); Francisco Bueno: Estilística Brasileira (1964);Gladstone Chaves de Melo: Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa (1979); G. Molinié : La Stylistique (1989); Helmut Hatzfeld: A Critical Bibliography of the New Stylistics applied to Romances Literatures: 1953-1965 (1966); Laura Wright e Jonathan Hope: Stylistics: A Practical Coursebook (1995); M. Rodrigues Lapa: Estilística da Língua Portuguesa (1977); Michael Riffaterre: Essais de stylistique structurale (1971); Pelayo H. Fernandez: Estilistica: Estilo, figuras estilisticas, tropos (1981); Pierre Guiraud: La Stylistique (1955; 8ªed.,1975); Id.. Essais de stylistique (1969) ; Pierre Guiraud e Pierre Kuentz: La Stylistique (1970) ; Richard Bradford: Stylistics (1997);

Carlos Ceia

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