Super-García Márquez contra a morte em vida

O problema não é ser o autor mau escritor, não é disso que se trata; ele é bom escritor, esse é o problema
Joca Reiners Terron
A simpatia pelos vitoriosos nunca foi meu forte. Meus heróis literários sempre foram os fracassados, os mortos precoces e bonitos para sempre, com aquela languidez típica dos doentes nas fotos das capas dos livros. Afinal de contas, a desgraça da derrota só pode ser atrativa conquanto o defunto transpire beleza eterna. Derrotados feios também não são a cereja da cobertura de meu sundae, mas pude admitir alguns em meu estúpido clube: Tristan Corbière (conhecido pela alcunha nada entusiasmante de "sapo"), Georges Perec (com aquele cabelo de globetrotter onde ele devia guardar todos os seus puzzles) e François Villon (cuja cara ninguém conhece, mas linda não devia ser; talvez com uma cicatriz aqui e outra ali, em cima do lábio inchado de assassino). E isso apenas para ficar na ala francófona de minha necrofilia literária.

Super-Gabriel García Márquez é um escritor que atingiu a imortalidade em vida, e não há nada mais antipático do que isso. Afinal, escritores têm de padecer à míngua, comer a asinha magra do arroz com pollo colombiano (sem direito a repeteco), e não se fala mais nisso. É o que esperamos deles, não? Que sofram, pois não há literatura com magnitude sem penúria física, e o supra-sumo da lava vertida pelo cérebro, a imaginação, somente borbulha com a fervura atroz das más experiências. Não era Faulkner quem defendia que o escritor depende de três talentos, a experiência, a imaginação e a observação? Não há nada para se observar a partir do Olimpo, a não ser bisbilhotar o que há sob a saia de Vênus, porém em geral ela está de calças (a conheço bem). E não pode haver imaginação possível num sujeito de bolsos recheados com um milhão de dólares.
Não sei se a avassaladora onda de títulos com a palavra "coronel", na minha infância dos anos 70, pode ser suficiente para explicar uma discreta alergia por tudo o que cheire a realismo mágico. Essa rinite alérgica à poeira vinda dos Andes, mas também de outros recantos mais abaixo, como a trazida pelo paraguaio Augusto Roa Bastos ou mesmo por brasileiros como Márcio Souza e Ricardo Guilherme Dicke, acabou por confundir meu olfato, e culminei por misturar coalhos com frangalhos, estendendo meu preconceito a quase todos os autores latino-americanos provenientes do boom. Acho que até mesmo Cortázar saiu chamuscado desse incêndio particular.

A presença de coronéis, elementos mágicos e o povo submetido às humilhações e ignomínias de ontem, de hoje e de sempre, à luta pela terra e pela vida, à poeira das estradas arrastada pelo galope de cavalos, aos fantasmas com olhos de coruja sobrevoando currais e cemitérios escravos na noite dos profundos grotões da América etc., tudo isso não me atraía muito naquele período, justamente porque eu vivia no Mato Grosso, um "país castelhano" incrustado no centro do Brasil, cuja formação (que mistura a mitologia de diversos troncos indígenas, mas principalmente do grupo ishir-chamacoco) é riquíssima em cultura oral, resultando em uma copiosa nascente de histórias enfeitiçadas magnetizando as mentes das pessoas. Enfim, a literatura de García Márquez não podia competir com a realidade ao meu redor. Além disso, como todo jovem exilado (no caso um exílio insular às avessas, cercado de terra por todos os lados), minha exclusiva preocupação era dedicada ao que me era interdito, ao que estava fora de alcance. Nesse período, quando encontrava os primos da cidade nas férias de final de ano, invejava-lhes a borracha negra de asfalto dos tênis, ao passo que escondia as minhas, vergonhosamente encardidas de barro vermelho. E suspirava, intuindo que enfim o realismo mágico nada mais poderia ser do que uma sobrevida concedida ao romance regionalista e que, mesmo apesar de mágico, ele não poderia me resgatar do longínquo da província. É a mesma coisa que o folhetim global da novela das seis ainda faz hoje em dia (diluindo ainda mais a bula de magias, amores impossíveis e lutas agrárias), e só posso concluir que tal lambuja vital (a essa altura mais assemelhada a espasmos ou estertores) se deva à inescapável nostalgia rural do país que resultou do êxodo, onde mais de 70% da população habita os centros urbanos (é o caso do Brasil).

Mas o García Márquez de Cem anos de solidão parece ter ficado preso em algum porão de Macondo, lá no passado (Macondo inclusive não deve ter conseguido prescindir aos McDonalds), e outros Garcías Márquez surgiram e desapareceram, em longas temporadas entre Nova York, Estocolmo e Cidade do México. Porém, nunca os seus epígonos. Cópias mal xerocadas de García Márquez saltitam por todo o mundo em número impressionante e, me parece, interminável, ou pior, inexterminável, o que soa muito mais trágico. Aqui mesmo, lá e acolá, e até em lugares absolutamente improváveis como Bulgária, China ou Cazaquistão, devem existir numerosos garcias márquez locais, se reproduzindo feito rãs mágicas, saltitantes nas charnecas e chafurdando nas mazelas locais de seus respectivos países ou pântanos. Contudo, há uma cópia matriz e mais lamentável de García Márquez - ele próprio. E é essa cópia que passeia pelo mundo, bajulando poderosos, ajoelhando-se diante do Papa no Vaticano, cumprimentando sorridente na primeira página dos diários ora Fidel Castro, ora o presidente americano da vez, e cometendo atrocidades literárias equivocadas como Notícias de um seqüestro. Mas nada é comparável ao maior pecado de García Márquez, que leva o nome de Isabel Allende. A açucarada romancista chilena consegue ser mais triste que a cópia xerox com toner no fim que o escritor colombiano produziu de si mesmo (e vem automaticamente se copiando nos últimos trinta anos). Allende é a mecanização enfadonha do que o pior realismo mágico (do gênero "heróico") pode produzir e a mistificação do fantástico criado à imagem e semelhança de seu leitor ideal, no caso as leitoras da revista Elle. Nada errado com Elle ou suas leitoras, a não ser Isabel Allende.

E não é que Super-GM seja mau escritor, não é disso que trato. Ele é bom escritor, esse é o problema. E é adorado nas escolas de jornalismo, graças a alguns de seus livros, que são bibliografia básica de qualquer faculdade, e também por, apesar do Nobel, ter continuado a se dedicar às redações há até pouco tempo, como diretor editorial da revista colombiana Cambio (com uma filial mexicana, que García Márquez também dirigia, com o auxílio do escritor Mauricio Montiel), onde formou gerações de jornalistas. Ocorre que o galardão do Nobel (e nunca deixarei de pensar que o colombiano levou o prêmio que deveria ser de Jorge Luis Borges), ao mesmo tempo que glorifica em vida a figura de um escritor, submete ao esquecimento prévio toda uma literatura, num processo metonímico que leva a audiência a prestar a atenção apenas à ponta do iceberg em vez de preocupar-se com a totalidade da barreira de gelo submersa. Em entrevista ao Jornal do Brasil, o tradutor espanhol Basílio Losada (pioneiro na divulgação da literatura brasileira na Espanha) afirmou que "na Europa, há uma fixação por estabelecer um autor para cada literatura. A portuguesa, por exemplo, concentra-se em Pessoa e Saramago. Acaba acontecendo que um único nome pode ocultar toda uma literatura". É essa precisamente a maior dívida de García Márquez: por anos não houve atenção aos narradores latino-americanos posteriores a sua presença, fenômeno que só recentemente ameaça ruir com o surgimento dos autores reunidos na antologia McOndo, organizada pelo chileno Alberto Fuguet, e a atenção conquistada pelo também chileno Roberto Bolaño. E é o que deverá ocorrer com a literatura de língua portuguesa no mundo, depois da premiação de José Saramago, com a diferença, está claro, que nossa literatura antes nem ao menos existia e assim permanecerá seu fluir subterrâneo. Mas somente se deixarmos.


Joca Reiners Terron é escritor, publicou Hotel Hell (Livros do Mal) e Curva de rio sujo (Ed. Planeta), dentre outros livros

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